Os presidiários Marcos Willians Herbas Camacho, Luiz Fernando da Costa e André Oliveira Macedo passam a ter mais uma coisa em comum, além da vida no crime e das grades que os encarceram. Caso aprovado no Senado, o PL da Dosimetria, que saiu da Câmara dos Deputados no último dia 10, fará de Marcola, Fernandinho Beira-Mar e André do Rap — como são conhecidos — potenciais beneficiários da manobra criada para reduzir o tempo de Jair Messias Bolsonaro (PL) e dos principais articuladores da tentativa de golpe culminada em 8 de janeiro de 2023 na prisão.
Mais do que uma contradição de muitos que sempre bradaram pelo endurecimento de penas judiciais, o contraste agora se dá pelo texto da Câmara ser aprovado horas após o Senado endurecer o chamado PL Antifacção.
NESTA REPORTAGEM
O desastre jurídico e favorecimento a criminosos
Conexão com o crime organizado e momento educativo
Dosimetria favorece criminosos do consórcio político-criminal
Pingue-pongue com os interesses da população
Possibilidade de beneficiar criminosos será debate na CCJ do Senado
Entenda o contexto
Embora o relator Paulinho da Força (Solidariedade-SP) tenha afirmado que o projeto que alivia os cerca de seis anos de cárcere de Bolsonaro só repercutiria nos condenados pelo 8 de janeiro e por tentativa de golpe de Estado, a análise detalhada do texto aprovado revela uma realidade bem diferente.
Cerca de 190 mil criminosos podem se beneficiar do projeto que alivia a pena de Bolsonaro
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da PUCRS, pesquisador do CNPq e associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Foto: Acervo Pessoal
“Na verdade, o impacto é muito mais amplo”, afirma o sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da PUCRS, pesquisador do CNPq e associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“O projeto estabelece essa regra de um sexto de cumprimento da pena em regime fechado, contrariando o chamado pacote anticrime, que foi aprovado em 2019 e que aumentou o tempo de cumprimento de pena em regime fechado para uma grande quantidade de delitos”, avalia.
O professor explica que, embora os incisos do PL tentem criar exceções — como crimes contra a vida e crimes violentos contra o patrimônio dos títulos I e II do Código Penal —, há muitos outros crimes violentos que não estão cobertos. “Por exemplo, estupro não se enquadra nessas exceções”, exemplifica Azevedo. “Há também uma previsão de tempo de cumprimento de pena em regime fechado para crimes hediondos e para toda uma sorte de crimes, inclusive crimes de colarinho branco, em que o PL da Dosimetria reduz também o tempo de cumprimento de pena em regime fechado”, destaca.
A estimativa é que cerca de 190 mil pessoas presas poderão sair dos cárceres com a aprovação do PL da Dosimetria. “Com certeza haverá uma grande quantidade de revisões criminais”, prevê o pesquisador, alertando para o risco de pedidos de progressão de regime por lideranças de facções que hoje cumprem pena.
O desastre jurídico e favorecimento a criminosos
O jurista Lenio Streck faz duras críticas ao PL relatado por Paulinho da Força. Ele o classifica como “um queijo suíço”, cheio de brechas. “Se ele for aplicado como está, libera pelo menos metade dos presos do Brasil. Estão brincando com fogo”, alertou.
Streck questiona a alegação de que especialistas teriam revisado o texto. “Dizem que passou por juristas próximos a não sei quem. Todos os juristas que revisaram esse projeto, se é que revisaram, precisam explicar isso. Porque o projeto é um desastre”, criticou. Para ele, a proposta não apenas fragiliza o combate ao crime organizado, como cria insegurança jurídica e coloca o país diante de um cenário “de consequências imprevisíveis”.
O PL também cria contradições que vão gerar conflitos judiciários. “Poderão ter aí uma série de situações em que haverá dúvida sobre qual é a legislação aplicável, sobre qual é a dosimetria correta, e isso com certeza vai gerar ainda mais dificuldades para o funcionamento do sistema penal”, observa Azevedo.
A contradição entre o discurso e a prática chama atenção. Azevedo analisa que o paradoxo demonstra que o campo político que está por trás do PL da Dosimetria revela um discurso contraditório e oportunista. “Esse discurso punitivista não se sustenta quando a criminalização atinge, justamente, pessoas ligadas a esse campo político”, afirma.
O pesquisador é ainda mais incisivo: “Quando esses políticos do campo da extrema-direita, da direita e, podemos dizer também, do centrão verbalizam essa defesa do endurecimento penal, na verdade eles direcionam esse endurecimento exclusivamente para pobres, negros, moradores de periferia, que são essa criminalidade mais visível. Mas, quando a criminalização se direciona para os crimes de colarinho branco, para os crimes praticados por elites políticas e econômicas, que nós sabemos que são hoje fundamentais para a existência do crime organizado no Brasil, aí o discurso é outro”, lamenta.
Conexão com o crime organizado e momento educativo
Cerca de 190 mil criminosos podem se beneficiar do projeto que alivia a pena de Bolsonaro
Para Mayra Goulart, professora de ciência política da UFRJ
Para Mayra Goulart, professora de ciência política da UFRJ, a votação demonstra como a extrema-direita bolsonarista está ligada ao crime organizado. Ela não acredita que tenha sido mero descuido dar essa brecha para o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).
“Esse projeto não deixa apenas uma abertura acidental para reduzir a pena de criminosos. Ele indica um consórcio, uma sintonia com interesses do crime organizado”, afirmou a professora. Mayra argumenta que, ao mesmo tempo em que setores da extrema-direita transformam a segurança pública em sua principal bandeira — com discursos de endurecimento policial e retórica violenta —, mantêm, segundo ela, “um telhado de vidro” pela relação já consolidada com organizações criminosas.
“Não faz sentido defender mais violência, mais tiro, mais letalidade quando, na prática, esses mesmos grupos ajudam o crime organizado a lavar dinheiro”, argumenta Mayra. “A disputa não é sobre intensificar a violência, e sim sobre inteligência: rastrear o dinheiro, impedir que essas redes se sustentem e garantir que criminosos cumpram as penas que devem cumprir”, pontua.
Dosimetria favorece criminosos do consórcio político-criminal
Para a professora, o projeto de dosimetria se torna funcional a esses interesses. “Essa brecha vai poder ser usada para reduzir penas de criminosos que integram esse consórcio político-criminal que eles administram. Por isso é fundamental denunciar essa contradição e recolocar a segurança pública como política de Estado, baseada em investigação e controle financeiro, e não em slogans”, conclui.
Para Azevedo, há um lado educativo nesse episódio. “Eu acho que é até educativo esse momento para que isso, que se caracteriza como um populismo penal, seja desmascarado. E nós possamos, enquanto sociedade, tratar dessas questões de forma mais racional, proporcional e com algum tipo de coerência, se nós queremos, de fato, alterar o cenário da criminalidade no Brasil e, especificamente, da criminalidade organizada”, aponta.
Para o pesquisador, “esse discurso de combate ao crime, na verdade, é uma falácia, é uma tentativa de exploração de um tema que preocupa a opinião pública, mas, olhando com lupa, a gente percebe que não é bem isso que está por trás dessas propostas”.
Pingue-pongue com os interesses da população
Entre disputas políticas, atalhos regimentais e improvisações legislativas, o Brasil se vê diante de um cenário de efeitos potencialmente profundos sobre o sistema penal.
A síntese de Azevedo ajuda a dimensionar o momento: “O país corre o risco de desmontar, por casuísmo, o pouco de coerência que ainda resta na política criminal. A janela aberta para enfrentar o crime organizado pode ser fechada justamente por quem diz combatê-lo”.
Para ele, agora há o risco de um “pingue-pongue entre as Casas”. Azevedo se refere ao PL Antifacção, proposição do governo Lula que foi fortemente descaracterizada na Câmara pelo deputado Guilherme Derrite (Progressistas-SP). O parlamentar deixou o comando da Secretaria de Segurança Pública do governo Tarcísio de Freitas, em São Paulo, para relatá-lo.
No Senado, entende Azevedo, o relator Alessandro Vieira (MDB-SE) reconstruiu quase integralmente a proposta original e restabeleceu parâmetros técnicos ignorados pela Câmara.
“O projeto tal como foi aprovado agora no Senado me parece bastante adequado, traz medidas muito necessárias para coibir a criminalidade organizada no Brasil”, avalia o integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O temor reside nas intenções já anunciadas de Derrite em reestruturar novamente a proposição.
O risco do chamado pingue-pongue entre Senado e Câmara pode acabar prejudicando aquilo que se pretendia: uma rápida resposta em termos de reformas legais para a atuação do Estado contra o crime organizado.
Azevedo considera importante registrar que campos políticos da direita e do centrão têm uma preocupação em estabelecer algumas amarras para o funcionamento da Justiça. “Não vou fazer uma afirmação de que eles estariam defendendo certas estruturas da criminalidade organizada, mas posso afirmar que tanto essa proposta quanto a da dosimetria acabam criando, sim, dificuldades para o funcionamento tanto da polícia e da investigação criminal quanto do Poder Judiciário”, conclui
Possibilidade de beneficiar criminosos será debate na CCJ do Senado
Cerca de 190 mil criminosos podem se beneficiar do projeto que alivia a pena de Bolsonaro
Alessandro Vieira (MDB-SE) classificou o projeto como tecnicamente insustentável. Segundo ele, o texto promove um afrouxamento generalizado do tratamento penal para criminosos, em desacordo com o discurso político que sustentou sua aprovação na Câmara
O avanço do Projeto de Lei da Dosimetria (PL 2.162/2023) também intensificou as tensões no Senado. A proposta, que altera regras de cálculo e progressão das penas e pode reduzir o tempo de prisão de condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro, entrou na pauta da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e do Plenário para a próxima quarta-feira, 17. Senadores apontam falhas estruturais no texto aprovado pela Câmara dos Deputados e alertam que seus efeitos extrapolam os crimes ligados aos ataques às instituições democráticas.
NESTA REPORTAGEM
Um dos principais críticos é o senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que classificou o projeto como tecnicamente insustentável. Segundo ele, o texto promove um afrouxamento generalizado do tratamento penal, em desacordo com o discurso político que sustentou sua aprovação na Câmara. “O texto do PL da Dosimetria carrega vícios insanáveis, em especial por afrouxar o tratamento penal para crimes diversos daqueles declarados pelos deputados. Vou apresentar voto em separado pela rejeição total do projeto, buscando a construção de soluções técnicas para o tema”, afirmou o senador em publicação nas redes sociais.
O chamado voto em separado só será analisado caso a CCJ rejeite o relatório apresentado pelo senador Esperidião Amin (PP-SC), relator da matéria. Até o momento, Alessandro Vieira não detalhou quais alterações pretende propor.
Além do risco de redução ampla das penas, Vieira também aponta que o texto pode resultar na criação indireta de novos tipos penais, abrindo margem para conflitos jurídicos com o PL Antifacção, relatado por ele no Senado e já aprovado pela Casa. A proposta endurece regras da Lei de Execução Penal no combate ao crime organizado e ainda precisa ser reavaliada pela Câmara dos Deputados.
Entenda o contexto
Embora tenha sido apresentado como resposta às condenações relacionadas ao 8 de janeiro, inclusive a de Jair Bolsonaro, o alcance do projeto é significativamente mais amplo. A iniciativa surgiu a partir da proposta de anistia defendida pela oposição, mas foi reformulada ao longo de meses de negociação para tratar formalmente da redução de penas. Ainda assim, a votação na Câmara, concluída na semana passada em sessão que avançou pela madrugada, ocorreu sob forte resistência da base governista.
O principal ponto de controvérsia está na alteração do artigo 112 da Lei de Execução Penal, que regula a progressão de regime. Pelo texto aprovado, a progressão passa a ser, como regra geral, permitida após o cumprimento de um sexto da pena. Percentuais mais elevados ficam restritos a exceções específicas, como crimes hediondos, feminicídio, milícia e delitos cometidos com violência ou grave ameaça previstos nos Títulos I e II do Código Penal.
Especialistas alertam que esse modelo abriu brechas relevantes. Crimes que não aparecem entre as exceções passam automaticamente a se enquadrar na regra mais branda. Parte dos crimes sexuais, como atos libidinosos sem violência ou grave ameaça, não é classificada como hedionda e poderia ter progressão mais rápida do que a atualmente aplicada. O mesmo ocorre com crimes de corrupção e crimes ambientais, tipificados principalmente na Lei 9.605/1998, que não receberam qualquer ressalva no texto aprovado.
Diante das críticas, o relator no Senado, Esperidião Amin, admitiu a possibilidade de rever o conteúdo vindo da Câmara. Caso haja modificações, o projeto terá de retornar para nova análise dos deputados. Apesar das controvérsias, a tramitação deve avançar nesta semana, a última antes do recesso parlamentar. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), afirmou ter o “compromisso” de concluir a votação da proposta ainda neste ano.